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Será um Plano Ferroviário Nacional para a CARGA?

14 Mai

Artigo de António Nabo Martins, Presidente Executivo da Apat


“Antes de qualquer outra consideração ser ferroviário é diferente de trabalhar na ferrovia. Ser ferroviário é em si mesmo um acto de amor no sofrimento.”
Este excerto é de Alberto Cuddel.

Sei que vou retirar do contexto em que foi escrito, mas reflete bem o sofrimento que muitos de nós viveram pelo menos nos últimos 30 e poucos anos. Todos demos o nosso melhor encontrando soluções, contrariando e questionando orientações, que todos sabíamos levar ao descalabro completo. Dividiram-nos e separaram-nos, proibiram-nos quase de falar com os outros e de repente queriam que o impossível acontecesse – “fazer omeletes sem ovos”.

Todo nós sabíamos que “Ser ferroviário é encontrar nos colegas a família, encontrar no trabalho uma outra vida, carregando nas mãos a vida de tantos …” (Alberto Cuddel), tantos seres humanos e tantas cargas, tantos desejos e expetativas, tanta vontade e com tanta alegria e, só por isto é que o descalabro não foi maior.

Hoje estou muito feliz porque finalmente e ao fim de tantos anos a falar sobre o assunto, até parece que alguém nos ouviu. Esse alguém, é um governo e, é esse alguém que nos traz a esperança de voltar a ter, a hipotética possibilidade, de ter um Plano Ferroviário Nacional. Digo hipotética, porque não é a primeira vez que ouço isto.

Seja por questões ambientais, seja por razões comerciais, políticas, financeiras ou económicas, ouvimos reiteradamente e repetidamente referir os enormes méritos da Ferrovia.

Foi dia 19 de abril de 2021. Talvez uma data a não esquecer.
Mais 6 dias e quase poderíamos dizer que estávamos perante um 25 de abril ferroviário em Portugal.

Recentemente afirmei que esta viagem entretanto iniciada, não tinha retorno. Todos os dias lemos e assistimos a ligações novas, com novos clientes e em novos territórios. Já são comboios completos de carga reefer, já são comboios, cujo cliente são administrações portuárias e já são Transitários e Operadores Logísticos que “compram” comboios completos e nalguns casos comercializam “slots” a outros clientes.

É verdade que o transporte ferroviário não é igual ao rodoviário, nem tão pouco ao maritimo. Com este não concorre, mas com o rodoviário tem condições para poder ser concorrente e cooperante, as cargas são em muitos casos semelhantes, apenas há que perceber as condicionantes das mesmas e do contexto e fazê-las viajar de comboio ou camião conforme as circunstâncias. A UE hoje desenha programas de apoio à ferrovia e os respetivos estados devem rapidamente adotar essas medidas e nalguns casos devem pugnar por outras mais apropriadas á sua realidade, pois as realidades são diferentes de país para país. Entre os 27 Estados-membros existe grande consenso para o investimento e aposta na ferrovia como principal meio de transporte para a transição climática e a construir um futuro melhor, com melhor ambiente e mais competitividade.

A título de exemplo, quando a China começou a fazer chegar os seus comboios à Europa, estes eram demorados e escassos. Entre 2013 e 2017 fez basicamente 9000 comboios transportando 800 000 teus. Em 2017 já fez 3600 comboios e passou praticamente de um TTime de 20 dias para 12/14 dias e em 2020 cerca de 5000 comboios. A procura pelo transporte ferroviário entre a Europa e a China tem "explodido nos últimos anos", servindo de alternativa à "morosidade e riscos inerentes ao transporte marítimo", e ao "alto custo do transporte aéreo", mesmo em ano de pandemia o serviço ferroviário entre a china e a Europa transportou mais de 2,81 milhões de toneladas de carga representando um aumento de 60%, relativamente a 2019. O que realmente aconteceu? O transporte ferroviário soube aproveitar as circunstâncias, as condicionantes e o momento O preço manteve-se estável e os fretes do transporte marítimo explodiram. Todos sabemos que o transporte terrestre entre continentes nunca poderá competir com o maritimo em quantidade, mas soube apresentar-se como uma alternativa e assim permitiu o seu desenvolvimento. 

Apesar da complexidade de gerir um serviço ferroviário como este, que não está apenas nas questões aduaneiras e no controle de tráfego, mas também nas diferenças e características especificas de cada rede. (Na Rússia e outros países da ex-União Soviética, a bitola é larga [1.520 mm], enquanto, na China e na Europa é mais estreita [1.435 mm]), foi possível chegar a este ponto. 
Porque não fazer benchmarking? aprender com quem já fez?, como fez? e porque fez? 
Apesar de tantos constrangimentos, o transporte de carga por comboio é duas a três vezes mais rápido do que por mar, e quase cinco vezes mais barato quando comparado ao transporte aéreo.
Já referi que as realidades são distintas, as regras diferentes e a regulação e segurança desiguais, mas há que tentar concretizar, deixar de lado o “discurso” e passar à ação. Por vezes na UE fala-se muito e executa-se pouco.

Não posso terminar sem voltar a referir o quão contente estou, porque ser ferroviário é “Mais que um trabalho, um emprego ou profissão, ser ferroviário é um acto de amor, de paixão!” pelo que se faz.
Cometemos muitos erros, não apenas ao nível da infraestrutura mas também ao nível da operação, pelo que seria igualmente interessante perceber como corrigir e emendar as aberrações então feitas. Por sorte, alguma coisa está a acontecer.

É ainda necessário avaliar as acessibilidades e infraestruturas necessárias para a carga, trabalhar para que sejam inseridas na rede “core” e assim poderem receber apoios comunitários. Há que estudar e acompanhar que necessidades são realmente evidentes para que a carga circule. Não me canso de repetir que sem carga não há comboios e que sem infraestruturas não há carga. A carga é o elemento aglutinador de toda a cadeia de valor num sistema ferroviário de mercadorias. Por isso, como é natural, toda a cadeia de valor, deve girar à volta deste “núcleo” [carga]. Esta funciona como o centro de um ecossistema e por isso mesmo os players desta cadeia de valor, acabam por se preocupar em angariar carga para o sistema.

Hoje é muito bom ver todos os agentes entusiasmados com a ideia de podermos, finalmente, vir ter um Plano Ferroviário Nacional. Hoje somos todos ferroviários, até mesmo aqueles que “enterraram” a ferrovia na última gaveta da secretária e nem queriam ouvir falar de comboios.

Hoje demos um pequeno passo para a ferrovia nacional, mas um enorme salto para o país. 

maio 2021

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