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Investimento na ferrovia: Estaremos todos a bordo?

13 Ago
 
Ignorada durante anos, a ferrovia portuguesa, com o passar das décadas, tornou-se obsoleta. ‘Desconfortável’ para passageiros, dispendiosa para transporte de mercadorias, com troços ainda por eletrificar, os caminhos de ferro portugueses serão nos próximos anos alvo do maior investimento estruturado de que há memória. Ainda com a Ferrovia 2020 a decorrer, mas já com o PNI 2030 prestes a entrar em andamento, fomos fazer o exame aos projetos que estão a ser estruturados.

Em conversa com organizações tão distintas com a Infraestruturas de Portugal, APAT ou Medway, a nossa publicação percebeu que é com entusiasmo que se perspetiva o ‘renascimento’ da aposta no transporte ferroviário. Se os muitos milhões a serem investidos geram um horizonte de esperança, também há problemas persistentes que poderão agora ser debelados… em certa medida.

Depois de um plano (Ferrovia 2020) que mexeu com o transporte de mercadorias, o transporte de passageiros irá transformar-se no quadro dos investimentos a realizar na próxima década. A nova linha Lisboa-Porto permitirá ‘desbloquear’ a velhinha infraestrutura agora existente para se tornar canal de exportação, mas todo o país beneficiará deste investimento… mesmo o transporte de mercadorias que, como nos conta a IP, nas palavras do seu vice-presidente Carlos Fernandes, poderia assegurar todo o volume de exportação para fora da nossa fronteira.
“É um programa verdadeiramente essencial para recuperar a ferrovia. Tivemos muitos anos sem qualquer investimento e este é, provavelmente, o maior investimento na ferrovia portuguesa desde há várias décadas. Temos literalmente o país, da linha do Minho ao Algarve, em obra. Estamos a intervir em cerca de 1000 km, numa rede que tem cerca de 2600 km. 2 mil milhões de investimento, são os grandes números, 50% de cofinanciamento europeu e 23% de todo o plano já concluído. Dois terços em fase de obra”, começa por referir o responsável da IP, Engenheiro Carlos Fernandes, a propósito do plano Ferrovia 2020.

“A aposta é, como é público, nas mercadorias. Os passageiros beneficiarão também, mas a grande aposta foi a ligação aos portos e a Espanha, e grande parte do investimento está a ser canalizado para o corredor norte, que liga ao norte de Espanha e à Europa, para o corredor sul, que nos liga essencialmente à zona de Madrid e ao sul de Espanha, e para a linha do Minho, que nos liga à Galiza, uma região com a qual temos muita afinidade e é uma fronteira que tem, de facto, uma procura muito significativa”, concluiu sobre este ponto.

Porém, há quem olhe para este plano ainda com alguma desconfiança e ainda maior expetativa, desculpando, como é o caso da Medway, alguns atrasos na concretização do plano. “No geral, estamos satisfeitos com o Ferrovia 2020, apesar dos atrasos verificados. Temos consciência das dificuldades do País, quer financeiras, quer aquelas causadas pela falta de quadros e de capacidade de planeamento, decorrentes da sua situação financeira em 2010/2011, e do consequente plano de auxílio a que fomos obrigados a recorrer. Por todos estes motivos, temos de compreender que se tem feito tudo aquilo que é possível”, explicou Carlos Vasconcelos, Presidente da Medway. A mesma visão é, em grande medida, secundada pela APAT: “Assistimos com muitas expetativas e muita esperança de que aparentemente o abandono da ferrovia em Portugal vai terminar e vamos ter uma discussão aberta e séria sobre que ferrovia necessita o País”, explica Nabo Martins à LOGÌSTICA&TRANSPORTES HOJE.
Com o plano para 2020 – deverá ficar concluído em 2023, segundo a IP – já em fase avançada de concretização, o foco de futuro passará por um maior aproveitamento desta infraestrutura. Com a eletrificação, convergência para uma sinalização em conformidade com as práticas europeias e aumento de troços de ligação direta, o país poderá entrar em marcha de alta velocidade rumo à exportação via terrestre… de longo curso.

“Vamos aumentar muito a competitividade no transporte de mercadorias, nomeadamente para as nossas fronteiras. Vamos reduzir em cerca de 30% o custo do transporte de mercadorias entre Leixões e a Fronteira de Vilar Formoso, e cerca de 50% o custo das mercadorias entre Sines e a fronteira espanhola. Com isto, no fundo, aumentamos significativamente a competitividade dos nossos portos estendendo-os para Espanha. Por outro lado, aumentamos muito a capacidade de transporte por ferrovia”, atira Carlos Fernandes.
“Com a conclusão do Ferrovia 2020, nós teríamos a capacidade – obviamente que isto não é fiável – para transferir tudo aquilo que usa a estrada para o caminho de ferro. É importante ter a noção que há um conjunto de mercadorias e destinos que usa preferencialmente a via marítima, o barco é uma via muito competitiva, e há uma parte significativa que usa a via terrestre, quer comboio quer camião. Nós teríamos a capacidade de transferir tudo aquilo que está em camião para o caminho de ferro se dependesse só da infraestrutura, sendo que tudo o que vai por via terrestre, 80% vai para Espanha e os outros 20% vão para o resto dos países europeus, com muito impacto quer para França quer para Alemanha. Temos capacidade, temos competitividade, e podemos focar-nos agora noutros aspetos da ferrovia, nomeadamente a questão dos passageiros”, explica-nos ainda.

Porém, a questão da diferença de bitolas continua a ser um ‘problema’ por resolver, algo que, no entender da IP não é substantivo, mas que para os operadores, lamentando a falta de capacidade de investimento, continua a ser, em certa medida, um constrangimento.

“É verdade que sempre tivemos o ‘problema’ da bitola, mas honestamente pensamos que o verdadeiro problema nunca foi esse. Os sistemas de segurança, a questão da eletrificação ou não dos troços junto à fronteira, as diferentes tensões elétricas, a falta de planeamento e política integrada e coordenada com Espanha, melhores acessibilidades rodoviárias, etc… levaram a que o transporte de mercadorias internacional por via ferroviária não se desenvolvesse como era suposto”, começa por referir o líder da APAT. “Não há muito tempo realizou-se o chamado ‘comboio da Alemanha’, para o qual foi possível coordenar com Espanha uma série de aspetos e, por isso mesmo, conseguiu-se realizar o comboio, e não foi pelo tema da bitola que o mesmo acabou. Uma estação fronteiriça – bitola ibérica e bitola europeia, bem-dotada e adaptada – terá condições para trocar 30 UTI’s entre vagões em cerca de 2 a 3 horas, num trajeto de 72 horas não faz grande diferença. Outra prova disso são os chamados comboios da China para a Europa, que trocam 4 vezes de bitola/carga e têm vindo a conseguir reduzir os tempos de trânsito porque conseguem ir otimizando cada vez mais e melhor as trocas, os horários e as operações necessárias”, explica, sintetizando de seguida: “No final, e se me disser que temos dinheiro suficiente para trocar material circulante e linhas para a bitola europeia, terei de concordar que era melhor ter o mesmo standard europeu do que o atual, mas parece-me que não vai haver dinheiro para isso”.

Por seu lado, a APAT acredita que o necessário não será tanto o investimento, mas sim um plano estruturado para o futuro da mobilidade de mercadorias. Mais do que pensar o presente, na conceção do líder dos transitários, o ponto principal deve ser lançar bases para um investimento consistente.

“A nosso ver, a ferrovia do país precisa de uma política e de um plano estratégico a longo prazo, que resulte de um consenso nacional das principais forças políticas e stakeholders e que não esteja dependente do calendário eleitoral. Isto porque é preciso ter em consideração que qualquer decisão de hoje só terá efeitos vários anos depois. Nesse sentido, é necessário que se defina que futuro queremos para a ferrovia e que meios estão disponíveis para o efeito. Esperamos, por isso, que o Plano Ferroviário Nacional que vai ser desenvolvido resulte num projeto concretizado no seguimento de um amplo debate e consenso nacionais, com um horizonte de algumas décadas, que, por conseguinte, fique livre das variações decorrentes das alternâncias políticas“, afirma Carlos Vasconcelos.
 
‘Adeus’ Ferrovia 2020, ‘olá’ PNI 2030
Se o foco até aqui esteve precisamente no transporte de mercadorias, o próximo plano a ser executado tenderá a dar mais destaque ao transporte de passageiros. A grande disrupção será introduzida pela criação de uma nova linha de alta velocidade entre Lisboa e Porto. A capital portuguesa e a segunda cidade mais importante do país ficarão ligadas por um percurso que deverá ser realizado em menos de 1h30, libertando a linha do Norte para outras funções.

“Com o PNI 2030 é o maior foco são os passageiros, mas, nas mercadorias, talvez o projeto mais emblemático são as ligações de alta velocidade entre Lisboa e o Porto e o Porto e Vigo. Pela disrupção que vão introduzir no plano ferroviário, são as principais apostas. A construção de uma nova linha entre o Porto e Lisboa terá impacto em todo o país. Permite descongestionar a linha do Norte, onde passam mais de 50% dos nossos comboios. Temos 730 comboios por dia na linha do Norte. Vamos tirar os comboios mais rápidos para uma linha nova, ficando a linha do Norte com capacidade para acomodar mais comboios de mercadorias, que é algo que hoje em dia temos muita dificuldade”, explica-nos o Engenheiro Carlos Fernandes.

Assim, um dos ‘problemas’ fica, no entender da IP, resolvido, isto porque a par deste ‘novo’ projeto, também a eletrificação da ferrovia, a sinalização e a ligação aos pontos-chave do país estará já concluída. Ainda assim, deveria ser, no entender da APAT, pensada a estruturação das plataformas logísticas, isto para se conseguir uma maior intermodalidade de transporte.

“O que nós dissemos foi que deviam ser definidas políticas publicas que potenciassem a intermodalidade. Em nosso entender a definição de uma rede principal (core) de terminais ou plataformas seria fundamental. Nem tão pouco dissemos que devia ser o Estado a construir, pois entendemos que há que ver o que existe e de que forma se pode conciliar os interesses do privado e do público”, começa por referir. “A definição das redes, dos nós e dos fluxos é um tema de particular importância para os transportes, em geral, e para a intermodalidade, em particular. Algumas perspetivas sobre os problemas de planeamento e rotas em sistemas de transporte intermodal de mercadorias fazem parte das políticas mais vezes apontadas para um sistema de transporte mais sustentável”, acrescenta sobre este ponto Nabo Martins, concluindo de seguida: “Este PFN deveria assegurar a integração do modo ferroviário nas principais cadeias logísticas nacionais e internacionais de forma equitativa, isenta e independente, garantindo condições de concorrência e competitividade elevada ao país e às respetivas empresas”.
 
 E os portos, onde ficam?
“Concordamos com o princípio de articulação e é isso que está a ser feito. Já temos hoje ferrovia na ligação às principais plataformas logísticas, aos terminais intermodais e aos portos. Todos os portos estão ligados à ferrovia e quase todos a ser intervencionados ao nível da Ferrovia 2020. A nível dos grandes terminais rodo-ferroviários, temos a Bobadela, que está ligada, temos a plataforma de Sines, temos Leixões, está a ser construída uma grande plataforma no Lousado, por parte da Medway, e estamos a discutir nos últimos meses a criação de um porto seco na Guarda, portanto tudo isso está a ser feito e estamos perfeitamente alinhados para a melhoria do sistema ferroviário e a sua ligação às plataformas. Isso está a ser discutido e estamos a trabalhar com a APAT com quem mantemos reuniões de trabalho nesse sentido”, começa por confirmar Carlos Fernandes, da IP. Porém, esta é uma visão algo dissonante da ‘realidade’.  Apesar deste otimismo latente, a Medway apresenta uma outra perspetiva, mais ligada a quem operacionaliza todo o processo logístico, pedindo atenção redobrada para a ligação que será necessário intensificar.

“Os portos representam os principais destinos e origens das mercadorias hoje movimentadas pela ferrovia na Península Ibérica, sendo, por isso, determinantes as suas ligações ferroviárias. Em Portugal ainda há um caminho a percorrer em alguns portos, esperando nós que as presentes limitações ou insuficiências estejam contempladas no Plano Ferroviário Nacional”, atira Carlos Vasconcelos.

Assim, para lá de todo este processo, Estado e privados deveriam, também no entender da APAT, conciliar posições, desburocratizar processos e garantir igualdade na saída e entrada de mercadorias em território Nacional. “A ligação a redes de operadores globais pode trazer vantagens comerciais ou operacionais e estas estratégias de colaboração podem ser realizadas com outras empresas e integrando redes internacionais. O mundo é global, a economia também e para que a nossa economia cresça temos de apostar nas exportações. As empresas nacionais devem olhar e ir lá para ‘fora’, mas o Estado deverá garantir condições e infraestruturas necessárias para que os produtos nacionais cheguem lá fora, da mesma forma que os produtos estrangeiros chegam a Portugal”, começa por referir Nabo Martins.

“Por norma dizemos que o estado é ‘preguiçoso’ e pouco dinâmico e as agências governamentais não são orientadas para o negócio, mas podem ser facilitadoras, simplificando e agilizando as relações empresariais e negócios. Por outro lado, dizemos que o privado é o oposto e, por isso mesmo, é que necessita de um conjunto de políticas que permitam plataformas de entendimento, de menos burocracia, de melhor justiça e de maior equidade fiscal. Só assim as empresas portuguesas ganham dimensão e ‘massa critica’ que lhes permita ombrear com as suas congéneres estrangeiras“, atira para finalizar sobre o tema.
 
Foco no ferrovia… e na sustentabilidade
Com o tema sustentabilidade a ganhar força durante os últimos anos e predominantemente durante os últimos meses, a eletrificação das vias é vista como essencial. Aumentar a competitividade com o fim dos comboios a diesel é uma das formas de melhorar toda a operação, mas o cumprimento de metas futuras é o foco de todos os agentes envolvidos na transformação do transporte ferroviário.

“A mobilidade sustentável requer ações concretas para reduzir a necessidade de viagens e, em muitos casos, reduzir as distâncias, incentivar a transferência modal, e encorajar a mais eficiência no sistema de transportes. Portugal assenta muito a sua atividade de transporte de mercadorias na rodovia, o que é natural pois as condições da nossa rodovia são das melhores na Europa. Penso que o que se pretende não é ‘diabolizar’ um modo em detrimento de outros. O que se pretende é haver uma coexistência mais assente em cooperação. O comboio não faz o ‘porta-a-porta’, mas pode fazer a ‘grande viagem’, enquanto o camião poderá fazer o first e last mile. A utilização de UTI’s adaptadas aos novos desafios e tipologias de cargas, que podem circular de igual forma na rodovia e na ferrovia, mais plataformas rodo-ferroviárias, alguns incentivos e uma mentalidade mais ‘verde’, permitirão igualmente potenciar o modal shift e, com isso, espera-se mais sustentabilidade ambiental”, explica o líder da APAT.

A mesma perspetiva é partilhada pelos dois outros interlocutores que ouvimos. “Absolutamente essencial pôr foco na sustentabilidade. A ferrovia é, de longe, o transporte de mercadorias mais amigo do meio ambiente. Este apresenta um enorme potencial de crescimento e expansão, no qual é necessário investir, por um lado, para combater as alterações climáticas e assegurar o sucesso do Pacto Ecológico Europeu e, por outro lado, para aumentar a competitividade das empresas portuguesas no espaço Ibérico e Europeu. Queremos contribuir cada vez mais para a redução das emissões de CO2 do sector logístico e o transporte ferroviário permite uma redução de cerca de 70% de emissões de CO2 face ao mesmo transporte por modo rodoviário – redução essa que pode chegar aos 74%, se o transporte for efetuado com recurso exclusivo a locomotivas elétricas”, explica Carlos Vasconcelos.
 
Fonte: Logística & Transportes Hoje
Fonte fotográfica: Logística e Transportes Hoje

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